«Tive propostas de clubes, mas que diziam: “Tens de mudar a tua imagem”» – Entrevista BnR com Abel Xavier

– De volta às origens –

«Quando perdes e começas do zero, não estás a construir nada»

Bola na Rede: Já tens algum projeto em mente para voltar a treinar?

Abel Xavier: Tenho analisado algumas situações. Quis começar o exercício das minhas funções como treinador aqui em Portugal. Estive envolvido em três projetos, nomeadamente o Olhanense, o Farense e o Desportivo das Aves, projetos embrionários. A marca do Algarve é uma marca muito forte. Lá está o que aprendi: às vezes, temos que perceber onde é que estamos posicionados territorialmente. O Algarve tem o turismo, o clima, as praias, campos de golfe… Tem um mercado estrangeiro muito forte. Por que não fidelizar um adepto estrangeiro a um clube nacional? Por que não envolvermos o futebol nos packs de viagem para o Algarve? Em 2012, já pensava nessas coisas quando fui para o Algarve. No futebol, estamos muito orientados para aquilo que é a criação de mais-valia com os jogadores. Às vezes, esquecemo-nos das mais-valias que se podem gerar na zona onde estamos implantados. Depois, tive um apelo nacional para voltar a casa [seleção de Moçambique] e mapear o país para fazer um scouting alargado e constituir as seleções jovens. As seleções africanas são seleções da capital, porque os clubes grandes estão lá e esquece-se o resto do país. Falhámos a qualificação [para a CAN] no último minuto num jogo contra a Guiné-Bissau.

Bola na Rede: Foi isso que levou à tua dispensa?

Abel Xavier: Às vezes, as pessoas tentam justificar isso com um objetivo não conseguido. Jorge Jesus uma vez disse que o minuto 92 era um minuto que muita gente não ia esquecer, porque perdeu no Dragão ao minuto 92 e perdeu a Liga Europa ao minuto 92. As pessoas esquecem-se de quantos minutos passaram para chegar ao minuto 92. Costumo dizer que justificar um objetivo não conseguido ao minuto 92, quando houve três anos e meio de trabalho, é uma falsa questão. Pus no meu contrato a cláusula de que colocaria o meu lugar à disposição da Federação Moçambicana de Futebol se não fosse qualificado, para que pudéssemos perceber se existiam condições de continuar ou não. Ao pôr essa cláusula no meu contrato, a única coisa que quero é que as pessoas me deem todas as condições para trabalharmos para atingir aquele objetivo. O não o atingir ao minuto 92 tem muito que se lhe diga, mas, de qualquer das maneiras, o trabalho foi feito com muita paixão e compromisso. Deixei o modelo que aprendi no aparelho federativo português, em que tive que fazer adaptações, porque o país é diferente, e que está a ter continuidade. Os sub-20 ganharam recentemente o Torneio da COSAFA e está apurada para a CAN. A seleção principal, com o meu colega Luís Gonçalves, que foi meu adjunto nos primeiros dois anos, deseja qualificar-se para a próxima CAN. Portanto, todas as seleções estão a crescer e a trabalhar. Quando eu cheguei, tínhamos cinco mil pessoas no Estádio Nacional e terminámos com 47 mil pessoas. Todo o povo estava imbuído de uma nova crença, porque a bandeira tem peso. O futebol tem peso na sociedade e na política. Há que saber entender o que podemos fazer com a força do futebol. Um dos aspetos importantes foi juntar o futebol às causas sociais, levando o aparelho federativo a escolas, orfanatos e hospitais, fazendo doações e ajudando as pessoas. O jogador moçambicano, neste momento, é um exemplo na comunidade. Este é um trabalho que vai mais além do que o minuto 92. Para o treinador, ganhar ou perder e ter as malas prontas é muito fácil. Para se desenvolver um trabalho, isso tem que ser feito com conhecimento e estruturas que possam entender que não são as derrotas que vão retirar o crédito. Quando perdes e começas do zero, não estás a construir nadaEu perdi aos 92, mas consegui deixar um legado.

Bola na Rede: Hoje em dia, no contexto do futebol africano, jogar contra uma equipa como Moçambique é diferente do que era antes, pois os jogadores já têm outro tipo de condições, o que torna tudo mais competitivo. Também tens esta visão?

Abel Xavier: Moçambique, atualmente, é uma equipa extremamente forte. Em situações normais, Moçambique tem que se qualificar para a próxima CAN, porque a evolução do próprio trabalho faz com que a equipa esteja mais forte. O grupo que o selecionador nacional tem é um grupo que necessariamente passou pelas minhas mãos. A seleção pode competir com qualquer outra seleção africana. 

Bola na Rede: Em que é que o modelo implementado se diferencia daquilo que encontraste?

Abel Xavier: Eu acabei por ser uma peça muito importante para aquilo que foi a evolução na Federação Moçambicana de Futebol. Não tenho dúvidas nenhumas que todos os responsáveis reconhecem que aquilo que eu deixei era uma necessidade. O que é que significa jogar pelo país? O que é que significa o aparelho federativo? O que é que significa a relação do aparelho federativo com os clubes? O que é que significa a relação do selecionador nacional com os treinadores locais? Para mim, o selecionador é uma extensão dos colegas que fazem um trabalho diário. Portanto, se há uma organização muito limitada face ao que eu estava habituado, tenho que fazer mudanças. A mais fraturante foi acabar com uma certa promiscuidade que existia dentro da federação, em que os clubes a faziam refém. Temos que dizer que o aparelho federativo está acima de qualquer clube. Provocavam-se muitos problemas na cedência de jogadores. Defendo que, ao longo do tempo, tem que existir uma identidade própria na seleção nacional implementada a vários níveis: institucional, técnica e formação. Acredito que o selecionador nacional também deve coordenar o trabalho para ser incutido nas seleções de formação, porque um miúdo de 17/18 anos tem que ter a perceção de que dentro de dois ou três anos pode chegar à seleção principal. Fiz dos selecionadores sub-17 e sub-20 meus adjuntos para estarem próximos e terem um conhecimento presencial daquilo que é o trabalho que têm que implementar na seleção nacional. A mais importante era formar uma nova geração de jogadores moçambicanos. Passaram cerca de 178 jogadores pelas seleções nacionais em Moçambique, 40% com idades até aos 23 anos. A seleção moçambicana é uma seleção nova. Não se ganha dinheiro na seleção, ganha-se é valorização por se representar o país. Um jogador que pensa que vai para a seleção nacional ganhar dinheiro é um jogador que não está focado nem respeita os problemas da sociedade. Representar a seleção nacional de qualquer país é o valor mais importante de um jogador.  É a partir desse patamar que vai valorizar a sua própria carreira e vai poder ter maior visibilidade, porque vai poder jogar competições internacionais, o que vai fazer com que tenha maiores contratos e projeção. Que jogadores moçambicanos potenciou a seleção portuguesa? Muitos. Eu próprio sou moçambicano e joguei por Portugal. No final de contas, há uma entrada de jogadores guineenses, cabo-verdianos e angolanos em Portugal. O que é que se passa com Moçambique? Acabou a qualidade do jogador moçambicano? É uma falsa questão. Temos que ir à essência, voltar outra vez a formar e ver o que é que se passa em Moçambique. Tenho noção que Moçambique tem uma nova geração de jogadores. O que eu sempre desejei é que existam cimeiras [entre os Países de Língua Oficial Portuguesa], através do desporto, para que se possa olhar para a formação, para que possa haver proximidade entre os países e troca de informação e de conhecimento, para que os países possam crescer mais e ser mais competitivos. Vamos falar de todas as seleções africanas. Por que motivo França ganhou o Mundial com nove africanos e as cinco seleções de África não passam a primeira fase? Há aqui qualquer coisa que é um desafio interessante, do ponto de vista técnico, para as seleções africanas. Se o jogador africano joga nas melhores equipas do mundo como é que, num conjunto, não se podem formar seleções africanas competitivas para estarem no Mundial? Isto é um desafio. Os jogadores africanos são atletas por natureza e, neste momento, já têm uma compreensão técnico-tática, mas, como grupo, às vezes, estamos a discutir coisas que não têm interesse nenhum. Em Moçambique, foi um projeto sentimental que me deu uma clara noção do caminho para se poder liderar em África. Os jogadores precisam de ser trabalhados com metodologias atualizadas, sem muita complexidade, e com uma comunicação facilitada para que eles possam, na prática, fazer.

Francisco Grácio Martins
Francisco Grácio Martinshttp://www.bolanarede.pt
Em criança, recreava-se com a bola nos pés. Hoje, escreve sobre quem realmente faz magia com ela. Detém um incessante gosto por ouvir os protagonistas e uma grande curiosidade pelas histórias que contam. É licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e frequenta o Mestrado em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social.

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